Espíritas, precisamos falar sobre a Morte-Parte 1

Com o mesmo título publicado no jornal "O Consolador"  (nº 243-15/01/2012) - uma Revista Semanal de Divulgação Espírita na versão internet - , reproduzimos a 1ª parte do artigo autorizado pela sua autora Claudia Gelernter, que no dia 15 de abril estará aqui no Centro Espírita Ismael. Ela virá participar do Seminário "Nascer, Morrer, Renascer Ainda e Progredir Sempre, Tal é a Lei", organizado pela União das Sociedades Espíritas-USE/Distrital Tucuruvi, e vai expor também sobre a Morte. Claudia Gelernter é designer, psicóloga, pesquisadora espírita, palestrante e uma das fundadoras do C.E. Allan Kardec, da cidade paulista de Vinhedo.  No final deste artigo, apresentamos o seu auto perfil.


" Diálogo comum do cotidiano, nos dias atuais: Uma filha e sua mãe estão na cozinha, sentadas, comendo um delicioso pedaço de bolo, com leite e café. A criança, demonstrando certa angustia, comenta: "Mamãe, tenho medo de morrer". De olhos arregalados e coração descompassado, a mãe bate três vezes na madeira da mesa e afirma, com voz firme: "Imagina, menina! Vira essa boca pra lá! Você tem uma vida inteira pela frente, não vai acontecer nada de mal com você!".
A filha silencia e aprende, com esta atitude, três conceitos:
1. O assunto morte deve ser evitado.
2. A morte é algo distante, só acontece com os de longe ou quando estamos bem velhinhos.
3. Certos rituais, como, por exemplo, bater três vezes na mesa, pode ajudar a afastar a morte de nossas vidas.
Ou seja, a criança acabou de aprender três mentiras que possivelmente irá difundir para as próximas gerações.
Agora imaginemos que a prima da menina de nossa história veio a desencarnar dias após da cena descrita acima. Então, bastante aflita com aquela situação inusitada, a menina, chorando, pergunta: "Para onde foi a minha prima?" E a mãe, ansiosa, responde: "Não fique triste, querida... não chore! Ela está bem... ela se tornou uma estrelinha e estará para sempre brilhando no céu. À noite, iremos até a janela e poderemos vê-la". Neste momento a menina aprendeu dois novos conceitos:
1. Não devemos expressar nossa tristeza por causa da morte de alguém.
2. Quem morre vira estrela, fica imóvel e brilha à noite. Nada de brincadeiras, nem bolo de chocolate, nem abraços da mãe. Acabou tudo. Sobrou apenas o brilho na noite escura...

Philippe Ariès, historiador francês, especialista da era medieval no ocidente conta-nos que, no passado, a morte era um evento público e social. Portanto, fazia parte da vida de todos, do cotidiano, sendo algo a ser pensado, refletido, elaborado. Naquela época os homens que pereciam devido a doenças ou mesmo pela guerra, conheciam a trajetória da própria morte – o ultimo suspiro era aguardado no leito, num evento previamente organizado pelo próprio moribundo. A família participava ativamente do processo de morrer de seu familiar; os rituais eram cumpridos com manifestações de tristeza e dor, inclusive pelas crianças.
O moribundo tinha direito de morrer entre as pessoas mais significativas, era assistido, e tinha, portanto, o que chamamos de uma 'morte digna', podendo fechar ciclos, falar de seus anseios, de seus desejos - caso tivesse tempo para isso.
Na era medieval, o terrível era a morte repentina, pois nesta situação tornava-se difícil, se não impossível, as homenagens. (Paiva, 2011)
Vivíamos uma intensa e profunda representação da morte sem culpa - a morte era domesticada, familiar, quase encenada. Amigos e parentes do morto reuniam-se para assisti-lo em sua hora derradeira - "durante séculos a morte era um espetáculo público que ninguém pensaria em esquivar-se" (Ariès, 2003, p.22).
As pessoas reconheciam a morte de si mesmo. Porém, isso se transformou. Do final do século XVIII em diante a morte passou a ser a 'morte do outro'. Passou a ser vista como uma violação, uma ruptura, um fracasso, um interdito e, na impossibilidade de impedi-la, decidimos silenciá-la.
Passamos a colocá-la do lado de fora da vida, algo a ser escondido, camuflado.
Sendo assim, falar sobre a morte, hoje em dia, é algo feio, temeroso, antiquado.
Por outro lado, existe uma banalização da morte. As crianças recebem jogos onde matam pessoas e com isso, paradoxalmente, ganham mais vidas. Na TV os documentários mostram vários tipos de mortes, todas com apelo de espetáculo, num desfilar de desesperos alheios.

Por que será que isso aconteceu? Em que momento passamos a esconder e a negar a morte próxima a nós e a banalizamos no contexto social? Quando foi que decidimos que seria melhor hospitalizar o doente para que ele morresse longe de casa e, na maior parte das vezes, com apenas um acompanhante ao lado do leito, enquanto nos perdemos, assustados, com imagens nas TVs e nos jornais? Por que temos tanto medo de falar sobre o inevitável, deixando de refletir sobre tantas possibilidades?

Para melhor compreendermos a atualidade, precisamos voltar um pouco nossos olhos ao passado.
No século XIX, após o advento do iluminismo, com as suas idéias inovadoras, surge um movimento batizado como positivismo, idealizada pelo sociólogo Frances Auguste Comte. Nestes novos tempos, a única forma aceitável de conhecimento eram os nascidos a partir das ciências dita 'naturais', através das observações empíricas. Iniciou para o mundo a era do intelecto, em contraposição às regras teológicas da era medieval.
Apenas através do uso da razão o homem poderia se aproximar da verdade. Não existiria, segundo esta nova forma de pensar, outro meio para isso.
Então, baseado nas ciências médicas, onde o bom era o limpo, o higiênico, o puro, o saudável, iniciou-se um movimento de higiene social, onde a morte torna-se incabível por denunciar um fracasso da ciência, do bom, do saudável. A morte passa a ser vista como um erro, um distúrbio, algo sujo que deve ser escondido.
No século XX a hospitalização dos doentes terminais e a distanásia¹ tornaram-se praticas comuns. E assim é.

Hoje, continuamos evitando falar da morte, com medo que ela venha e nos leve embora. Temos receio de sentir a angustia da nossa própria finitude, então decidimos que não temos de comentar sobre isso.

E, entre os Espíritas, como é falar sobre a morte?
Para nós, a morte só diz respeito ao corpo, mas mesmo assim, mesmo sabendo desta bênção que é a vida após a vida, muitos Espíritas continuam respondendo as perguntas relativas à morte de maneira parecida com a mãe de nossa história: "Credo! Vira esta boca pra lá!". Poucos aceitam esta possibilidade com tranqüilidade, acatando que esta é uma realidade inevitável e que é preciso refletir sobre ela. Poucos respondem: "Pode ser que tenhamos de partir ainda hoje, realmente, então é melhor nos organizarmos todos os dias para isso".

Outro aspecto a ser salientado é a percepção do despreparo que os profissionais da saúde, de um modo geral, apresentam para lidar com o fenômeno da morte². Durante o período de seu mestrado, Dra Lucélia Paiva, psicóloga com atuação clínica, hospitalar e educacional, deparou-se com esta realidade. Os profissionais relataram seu despreparo nas questões da morte, o que gerava grande angustia - e o pior - uma angustia negada, não falada, não compartilhada e, portanto, não elaborada.
A defesa destes profissionais muitas vezes é o isolamento, uma distância psíquica, com a finalidade de blindagem emocional - o que os 'protege' das perdas, tornando-os, em contrapartida, pouco humanizados. "A exclusão das emoções, por vezes, é transformada por meio da racionalização, numa técnica cientifica, aparentemente necessária ao bom desempenho do trabalho. Estamos falando da pretensa "neutralidade", a qual justifica a falta de relacionamento com o paciente, protegendo o profissional do sofrimento frente à morte do outro. Porém, este fenômeno também o afasta da vida e da consciência de sua mortalidade" (Quintana, 2009). Foi por este motivo que em sua tese de doutorado, Dra Lucélia lançou um novo olhar sobre estas questões, indicando a urgência de se levar o tema morte para as escolas, entendendo que já de crianças precisamos ter contato com esta realidade, de acordo com nossa faixa etária, numa linguagem específica, dentro de um contexto onde a criança possa expor suas dúvidas, suas angustias e anseios, recebendo, em contrapartida, as informações de que necessita, o acolhimento para seguir adiante, mais fortalecida para dar conta, ao longo de sua vida, das tantas situações de perda que certamente acontecerão. Munidas destas ferramentas, poderão, no devido momento, escolher suas profissões de tal forma que, cientes dos desafios associados, estas não sejam fonte de enorme angustia, ao mesmo tempo em que sua atuação no mundo possa ser mais eficaz, mais completa, mais humana.

Mas, como podemos falar sobre a morte com crianças, se este tema nos causa tanta dor, tanto sofrimento? De que forma podemos passar conceitos, permitindo reflexões, com tanta ansiedade associada?

Dra Lucélia Paiva propõe, em seu livro A Arte de Falar da Morte Para Crianças, que utilizemos a literatura infantil para abordarmos este tema. Citando Torres (1999) afirma que "para falar de morte com as crianças, é importante que se utilize uma linguagem simples e direta com elas, bem como uma informação real acerca da morte, pois ela tem uma compreensão literal da linguagem". E complementa: "(...) As histórias estimulam a imaginação e ajudam a criança a trabalhar com coisas com as quais não consegue lidar. Ela coloca suas próprias emoções na história".(Paiva, 2011)

Nós, Espíritas, temos condições de ajudá-las a lidar com estas questões, desde bem cedo, utilizando dos recursos literários, do acolhimento, da escuta compreensiva, aliados ao conhecimento adquirido com a Doutrina que abraçamos.

Herculano Pires, o filósofo espírita, em sua obra Educação para a Morte, mostra como o ser humano deve ser educado, não só para esta vida, mas tambem preparando-se, através do seu aperfeiçoamento intelectual e moral, para as próximas existências, dentro do longo processo evolutivo. Logo na introdução da obra lemos que "para os materialistas, o título 'Educação para a Morte' significa 'Educação para o Nada'. Para aquele, no entanto, que entrevê a imortalidade da alma, esse título torna-se grandioso, pois ele compreende que a morte nada mais é do que o término de uma experiência material e o retorno à vida livre do Espírito". Mais adiante, no primeiro parágrafo do primeiro capítulo, o autor deixa claro o objetivo de seus escritos:
"Vou me deitar para dormir. Mas posso morrer durante o sono. Estou bem, não tenho nenhum motivo especial para pensar na morte neste momento. Nem para desejá-la. Mas a morte não é uma opção, nem uma possibilidade. É uma certeza. Quando o Júri de Atenas condenou Sócrates à morte ao invés de lhe dar um prêmio, sua mulher correu aflita para a prisão, gritando-lhe: "Sócrates, os juízes te condenaram à morte". O filósofo respondeu calmamente: "Eles também já estão condenados". A mulher insistiu no seu desespero: "Mas é uma sentença injusta!"E ele perguntou: "Preferias que fosse justa?"A serenidade de Sócrates era o produto de um processo educacional: a Educação para a Morte. É curioso notar que em nosso tempo só cuidamos da Educação para a Vida. Esquecemo-nos de que vivemos para morrer. A morte é o nosso fim inevitável. No entanto, chegamos geralmente a ela sem o menor preparo". (Pires, 1996).

A educação para a morte seria, portanto, um "processo educacional que tende a ajustar os educandos à realidade da Vida, que não consiste apenas no viver, mas também no existir e no transcender". (Pires, 1996). Nada tem a ver com saber de que forma conquistar o espaço no céu. Também não se trata de preparar-se apenas para o ultimo momento, mas, cientes da nossa finitude, refletir sobre a vida que queremos levar, o que precisamos fazer, onde e de que forma desejamos ir... isso tudo é, fundamentalmente, uma educação para a morte que se traduz na forma de sermos no mundo, em educação para a vida. E mais: para a vida além desta vida, e assim por diante.

Por isso Jesus ensinou que aqueles que se apegam à própria vida a perderão, e os que a perdem, na verdade, a ganharão. (Marcos, 8:35) Só quando nos damos conta de que precisaremos deixar a vida e que precisamos, no agora, trabalhar por nossa transcendência, é que teremos 'vida em abundância', ou seja, a verdadeira vida, a vida do Espírito – nossa verdadeira existência.
(Observação: esse artigo terá a  sua finalização – 2ª parte – neste final de semana – juntamente com as Notas da Autora e as Referências bibliográficas).
Auto perfil da autora – CLAUDIA GELERNTER -  Sou Espírita faz 23 anos, aproximadamente. Adentrei os portões do Espiritismo Cristão logo que nasceu minha primeira filha, Juliana, hoje com 24 anos, também Espírita. Realizei tarefas no campo da mediunidade em uma pequena Casa na cidade de Valinhos, depois migrei para o Grupo Batuíra de Vinhedo, onde desenvolvi diversos trabalhos por quinze anos. Saí daquela abençoada Casa para, em conjunto com amigos  queridos, fundar o CE Allan Kardec de Vinhedo. Hoje, nesta Casa, abraço o campo dos estudos, sendo coordenadora dos cursos doutrinários (ESDE, Evangelização e Mocidade), além de realizar tarefas na área mediúnica e de divulgação. Faço palestras e seminários, com frequência. Sou Designer e no momento estou cursando o quinto ano de Psicologia. Fiz um curso (em 2009), na USP de Tanatologia, com Dr Franklin Santos e, desde então, passei a falar mais sobre as questões da morte e do morrer. Fundamos, em 2010, a Tânatos (Associação Brasileira de Tanatologia, sediada em São Paulo, na Praça da República) e pretendemos alargar o campo de divulgação para outras cidades. O tema morte têm sido especialmente salientado por sua urgência e necessidade. Tenho realizado seminários em diversas cidades, falando a respeito, buscando auxiliar nossos companheiros do caminho que ainda sentem dificuldades neste campo. O Instituto Chico Xavier (Itu/ SP) abraçou nossa causa com carinho e nos tem auxiliado na divulgação do trabalho, além de outros amigos queridos, como por exemplo o confrade e amigo Jorge Hessen e o Sr Astolfo, da revista O Consolador. Além do tema morte, tenho me empenhado em difundir no meio Espírita sobre a necessidade constante de estudos, e outras questões que considero relevantes".



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